História

Há 44 anos, Lei da Anistia era início do fim da ditadura

Ex-professor da UCPel, que chegou a ser torturado, relembra os anos de repressão

Foto: Carlos Queiroz - DP - Professor ficou 34 dias preso por se opor à ditadura militar

Há 44 anos, na reta final da ditadura militar iniciada em 1964, o presidente João Figueiredo sancionava a Lei da Anistia, um passo marcante no caminho para a redemocratização brasileira. A lei concedeu perdão aos perseguidos pela ditadura por sua reação contra o regime, desde os que partiram para a resistência armada até os militantes que simplesmente fizeram críticas públicas aos militares.

Com a lei, exilados puderam voltar ao Brasil, clandestinos deixaram de se esconder e réus tiveram seus processos anulados. À época, apoiadores da ditadura bradaram a Lei da Anistia como o fruto de um consenso e um caminho para a pacificação do Brasil. Para parlamentares da oposição, restritos ao MDB, e militantes políticos a iniciativa tinha problemas.

Apesar de ter sido criada pela própria ditadura, a anistia foi fruto de movimentos políticos e entidades que cobravam a reabertura democrática e o perdão a perseguidos políticos, como o Movimento Feminino pela Anistia, criado em 1975 por mães, mulheres e filhas de presos e desaparecidos, e o Comitê Brasileiro pela Anistia, formado por 1978 por representantes de diversos estados e de Paris, na França, onde viviam muitos exilados.

O teor da lei continua até hoje sendo alvo de crítica e controvérsia, por perdoar também militares e agentes do governo que torturaram quem contrariava o regime e por não conceder perdão para militantes que já haviam sido condenados definitivamente por crimes considerados mais graves. O indulto a torturadores permitiu que eles jamais fossem punidos ou julgados.

O cientista político e professor Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Renato Della Vechia, avalia que, mesmo com a legislação da ditadura permitindo abusos, como prisões indiscriminadas por meramente suspeitar de uma pessoa, torturadores deveriam ser responsabilizados. “Tortura e assassinato não têm [previsão] em nenhum documento desse período. Mesmo sob a Constituição de 1967, que é autoritária, nada sustenta que pessoas que cometeram assassinatos em nome do Estado não possam ser punidas”, diz.

Mesmo com a resistência e as críticas da oposição, o projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional em 22 de agosto de 1979 e sancionada por Figueiredo em 28 de agosto. Nos meses seguintes, presos que não haviam sido soltos pela anistia acabaram sendo libertados, ou por indulto presidencial ou por revisão dos processos pelos tribunais militares. “Essa era uma bandeira fundamental para a redemocratização. Sem anistia, não tinha como pensar a normalidade democrática”, diz Della Vecchia.

O professor avalia que o Brasil até hoje tem dificuldade de olhar para o passado e reconhecer os terrores da ditadura. “Todo o processo de reparação, Comissão Nacional da Verdade, se deu a partir de pressões externas. Havia pressão interna de uma parcela da sociedade, mas no Brasil a luta pela punição e pelo esclarecimento dos crimes da ditadura ficou muito concentrada nas famílias e em poucas pessoas. Nunca chegou a ser um movimento massivo, como foi no Uruguai e na Argentina”, diz.

As marcas e memórias da repressão
Aos 84 anos, o anistiado Alceu Salamoni lembra com clareza dos eventos de 4 de maio de 1972. À época professor da Faculdade de Serviço Social da UCPel e estudante de direito, ele estava com uma de suas filhas nos braços quando militares bateram à sua porta, tiraram a criança do colo e o levaram preso para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Porto Alegre. Lá, ficou 34 dias sem que sua família ou colegas pudessem contatá-lo.

“A tortura é a coisa mais infernal que os homens inventaram, porque é fundamentalmente o Estado todo poderoso, que detém o poder da força, e vai para cima daqueles que querem que seja um Estado para a população”, diz. No período em que esteve preso, a rotina era ouvir outras pessoas sob tortura.

O “crime” de Salamoni foi distribuir panfletos contra a ditadura e a favor do voto nulo - já que parlamentares legitimamente eleitos eram cassados pelo regime. Nos 34 dias em que esteve preso, o professor e estudante foi torturado com choques elétricos e depôs sobre suas atividades consideradas subversivas. “A manifestação política era muito restrita, tu não podia se reunir. O período duro da ditadura foi um desastre nesse ponto”, relembra o professor.

Ao ser liberado da prisão, a UCPel recebeu recomendações do governo para que ele fosse demitido, mas, graças ao reitor Dom Antônio Zattera continuou empregado na universidade, apesar de ter sido afastado das salas de aula e realocado em funções administrativas mais discretas.

Militante da Ação Popular, um movimento de esquerda ligado à igreja católica, diz que toda ação dos movimentos era clandestina. “Quando tu entrava nessa jogada, sabia que estava sob risco, porque eles já tinham todas as tuas informações, sabiam tudo da tua vida. A gente apostou mesmo sabendo que não ia conseguir dar a virada, mas que alguém tinha que tentar resistir”, diz.

Ele explica que uma das ações do movimento na região era auxiliar a passagem de militantes perseguidos para o Uruguai, que ainda estava sob um regime democrático, mas entraria em uma ditadura em 1973. “A gente dava um jeito de passar. Tinha um padre em Jaguarão que simpatizava e passava caminhando a ponte com os caras”, relembra.
Já na transição de volta para a democracia, Salamoni pode envolver-se na política fora da clandestinidade e foi secretário de governo de Bernardo de Souza, prefeito de Pelotas entre 1983 e 1987. Com a anistia, o Estado brasileiro e o Rio Grande do Sul reconheceram a perseguição sofrida por Alceu Salamoni.

“O avanço da democracia é o grande desafio. Não dá pra parar!”, afirma o professor, olhando em retrospecto para sua trajetória e a história do Brasil. “A Constituição de 1988 foi posta para construir um Estado democrático. Que tipo de regras nós precisamos para chegar onde nós queremos? Essas regras estão sacramentadas na nossa constituição”, diz, salientando a importância de respeitá-la e de manter as divergências políticas dentro das regras democráticas.

Para que a democracia se consolide, Salamoni entende que é necessário a redução das desigualdades e uma educação melhor para a formação de uma sociedade consciente e politicamente madura. “Nós temos que ter um processo de educação que forme o ser humano, que discuta quais valores nós vamos defender e preservar”, diz, citando as mudanças climáticas como um ponto em que é necessário a conscientização e a participação de toda a sociedade.

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